09 março, 2011

Papel rascunhado

Como era habitual todas as manhãs levantava-me cedo para caminhar até a praia que havia junto a minha casa para assistir ao nascer do sol. Desde os 4 anos, altura em que os meus país se separaram e me mudara para a minha actual casa, que seguia este ritual. Fascinava-me a forma como a noite se transforma em dia, como toda a vida animal ou humana se desperta quando o sol renasce. Mas não era apenas isso que me fazia seguir este ritual durante tantos anos. Após a mudança com a minha mãe para a casa de praia dos meus falecidos avós que nunca mais virá o meu pai. Amava-o como nunca amei ninguém na minha vida, nem sei se voltarei a amar. No dia anterior a nossa partida o meu “papá” acordara-me cedo para ir com ele ver o fenómeno que mais o encantava neste mundo. O amanhecer. Nunca mais esquecerei as suas palavras «Amo-te tanto minha pequerrucha, permanecerei sempre contigo nem que seja nos teus pensamentos. Prometo», e assim foi. A última vez que o vira foi á 12 anos, quando ao afastar-me no carro com a minha mãe o vi acenar com as lágrimas a escorrem-lhe pelo rosto e lhe correspondi com o meu melhor sorriso para que ele ficasse feliz. Dai em diante a única forma de não sentir a sua falta era nesta altura do dia. Sentia a sua presença como se estivesse ali do meu lado e voltássemos a viver todos aqueles momentos de quando era criança, ouvia-o proferir as mesmas palavras do dia em que dei realmente importância ao amanhecer, naquele momento sentia uma paz, parecia que o tempo não tinha passado, que ainda éramos a “mamã”, o “papá” e a “pequerrucha” e desejava que assim fosse. Porém aquela manhã era diferente. Levantei-me e segui o meu habitual ritual, agarrei as chaves e sai. Nas escadas do hall de entrada estava um homem sentado. Era ele. Tinha quase a certeza. Avancei e sentei-me junto dele. Olhei a sua face já envelhecida e confirmei o que por si só já sabia. Questionei-o sobre o que estava ali a fazer depois de tanto tempo ausentado mas este não me respondeu, agarrou a minha mão e num movimento calmo levantou-se, puxando-me para ir com ele mais uma vez ver o renascer do dia. Manteve-se calado durante todo o percurso mas ouvia o fungar do seu choro. Quando chegamos sentou-se sobre a areia abraçando-me como fizera a anos atrás mas desta vez sem palavras. No dia seguinte o mesmo procedimento acontecera e foi assim durante as duas semanas seguintes. Até que, no último destes dias ele falou. «Peço-te perdão por nunca ter dado uma notícia durante todos estes anos mas senti que não devia interferir na tua vida, a tua mãe um dia disse-me que era apenas um entrave no teu crescimento mas não a culpes pois nunca lhe deveria ter dado ouvidos. Vim para me despedir de ti, para que soubesses que nunca te menti quando disse que te amava e ainda amo, hás-de sempre ser a minha pequerrucha, sempre. Hoje é o último dia que passarei por cá, que me verás. Talvez não devesse ter vindo mas sentia-me incompleto sem me despedir de ti e como te disse a anos atrás permanecerei sempre contigo nem que seja nos teus pensamentos. Amo-te». Abracei-o com todas as minhas forças e entre soluços disse-lhe que também o amava. Nesse dia só voltara a casa ao anoitecer. Ficamos ali na praia a recordar os momentos que passamos juntos, a partilhar vivências, gostos, tudo o que ele não pode acompanhar nestes anos eu contara-lhe o mais importante, o quanto eu mudara e como detestava morar naquela casa, o meu ritual de todas as manhãs, cada passo que dei ele descobriu e perdemos assim a noção do tempo. Fiquei exausta. Quando cai na cama as minhas pálpebras como por obrigação fecharam-se e cai num sono profundo. Na manhã seguinte segui o meu ritual. Vesti-me, sai do quarto, peguei as chaves e sai de casa mas nesse dia o “papá” já não estava lá. Então percebi que não voltaria a estar. Aquele tinha sido o último dia em que o tinha visto com vida. Uma lágrima iniciou o seu percurso pelo meu rosto mas não permiti. Sequei-a. Segui em frente para a praia. Sentei-me sobre a areia e percebi que não faria mais sentido sem ele, sem a sua real presença não faria sentido algum. Então levantei-me e como um pedaço de papel rascunhado que deitamos no lixo, deixei todas as memórias, ali jogadas pela areia.

&Lil

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